Por José Maria e Silva
A resolução do Conselho Federal de Psicologia que trata dos homossexuais não deve mesmo ser aplicada — além de inconstitucional, ela desrespeita o próprio Código de Ética dos Psicólogos
Oscilando entre a ignorância e o fanatismo, a bancada evangélica no Congresso Nacional resolveu transformar o Estado brasileiro num tribunal do Santo Ofício. E os heréticos dessa nova Inquisição são os homossexuais, vítimas de uma caça às bruxas liderada por um parlamentar goiano — o deputado federal João Campos, que, além de tucano, é líder da bancada evangélica. Apesar de lhe faltar o bigodinho nasal do Führer e de preferir ternos bem cortados em vez da capa cinturada do ditador alemão, João Campos está se revelando uma encarnação de Hitler. Fundamentalista, o deputado finge não ver que o Estado brasileiro é laico e, com base no seu fanatismo religioso, apresentou um projeto na Câmara dos Deputados que pretende implantar em todo o país a “cura gay”. O deputado advoga em causa própria, pois pastores como ele são absolutamente ignorantes em matéria de ciência e acham que a homossexualidade é um transtorno mental que deve ser curado com exorcismos. Com essa visão nazista, que envergonha Goiás e preocupa o Brasil, o deputado João Campos quer fazer dos gays os novos judeus — ou eles se deixam curar pelos pastores charlatães ou serão queimados pelo moralismo hipócrita da bancada evangélica.
Quem está acompanhando o noticiário sobre esse assunto sabe que o parágrafo acima é uma síntese interpretativa fiel do modo como a imprensa brasileira vem tratando o Projeto de Decreto Legislativo nº 234, de 2 de junho de 2011, de autoria do deputado federal João Campos (PSDB-GO), apelidado pela imprensa de projeto da “cura gay”. A proposta do parlamentar goiano pretende sustar a aplicação de dois dispositivos da Resolução nº 1, de 22 de março de 1999, do Conselho Federal de Psicologia (CFP), que estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da orientação sexual. João Campos propõe que seja sustada a aplicação do parágrafo único do artigo 3º da referida resolução, que diz: “Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades”. E também propõe a revogação prática de seu artigo 4º: “Os psicólogos não se pronunciarão nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica”.
No próprio Jornal Opção, em sua edição passada, a proposta de João Campos foi comparada ao Holocausto de Hitler pelo jornalista e músico Amaury Garcia, enquanto a médica e psicóloga Marilusa Terra, coordenadora do Projeto de Transexualismo da Universidade Federal de Goiás, chamou o parlamentar evangélico de “ignorante orientado por preconceitos”. Será mesmo? Garanto que não e desafio qualquer acadêmico do país a provar — com argumentos e não com a mera patente de doutor — que João Campos está errado. Ignorante e preconceituoso é quem critica a proposta do deputado sem se dar ao trabalho de lê-la. O que João Campos vem tentando demonstrar — sem, no entanto, ser ouvido com seriedade — é que seu projeto de decreto legislativo não impõe nenhuma “cura gay” aos homossexuais. Pelo contrário, respeita-os profundamente, tanto que mantém intacto o caput do artigo 3° da Resolução 1/99 do Conselho Federal de Psicologia que diz: “Os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados”.
Psicólogos são censurados
Para quem sabe ler sem preconceitos ideológicos, ao preservar integralmente esse dispositivo da resolução, João Campos deixa claro que não está propondo nenhuma “cura gay”. Ou seja, ele concorda que os psicólogos não devem “patologizar” (transformar em doença) os “comportamentos homoeróticos”, muito menos devem obrigar um homossexual a se submeter a qualquer tratamento contra sua própria vontade. Agora, o que nenhuma pessoa de bom senso pode aceitar é que um conselho profissional baixe normas que afetem não apenas seus filiados no exercício da profissão, mas também a população de um modo geral, inclusive os psicólogos, que, antes de serem profissionais, são pessoas e precisam ter sua individualidade respeitada pelo conselho. Ao determinar que os psicólogos não devem participar de eventos nos meios de comunicação que porventura reforcem preconceitos em relação aos homossexuais, a resolução do Conselho Federal de Psicologia estabelece a censura prévia e fere frontalmente o artigo 5º, inciso IX, da Constituição, que diz: “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.
Uma norma de um conselho profissional não pode valer mais do que a própria Constituição. O Conselho Federal de Medicina, por exemplo, não se arvora a impor censura prévia aos médicos. Prova disso é que a psiquiatria (prima-irmã da psicologia) comporta médicos das mais variadas correntes de pensamento, desde aqueles que tratam a mente como mero epifenômeno do cérebro (e defendem procedimentos cirúrgicos ou químicos para corrigir doenças mentais) até os que negam a própria existência da doença mental (e, inspirados por Marx e Foucault, tratam a loucura como mera disfunção da sociedade capitalista). Uns e outros não são proibidos pelo Conselho Federal de Medicina de expor essas teses tão contrastantes (e às vezes aparentemente ofensivas a terceiros) em livros, revistas especializadas, artigos e reportagens de jornal ou mesmo em programas de rádio e TV. Somente se alguém se sentir discriminado pela declaração pública de um médico e reclamar é que o Conselho Regional de Medicina investiga o caso e, se necessário, toma as devidas providências.
E tem de ser assim. Censurar previamente um profissional — proibindo-o de participar de um debate público apenas por achar que ele irá fomentar preconceitos — é que é, em si mesma, uma atitude preconceituosa. É como se o Conselho Federal de Psicologia duvidasse da integridade moral e da capacidade cognitiva de todo psicólogo e quisesse protegê-lo de si mesmo, instaurando uma espécie de menoridade intelectual na profissão. Essa atitude é ainda mais equivocada quando se sabe que a psicologia — justamente por trabalhar na complexa encruzilhada entre mente, corpo e ambiente — não é uma ciência exata e tende a ser muito mais subjetiva do que a psiquiatria (que também comporta um alto grau de subjetividade). Principalmente em questões como o homossexualismo, que será sempre um misto de determinismos biológicos e contingências ambientais, sendo praticamente impossível para a ciência chegar a um consenso irrefutável sobre o que leva uma pessoa a preferir o seu próprio sexo e não o oposto. Tanto que o movimento gay faz disso uma estratégia política, ora usando as ciências biológicas para exigir direitos (como a mudança de sexo paga pelo SUS), ora manipulando as ciências sociais para descumprir deveres (como a exigência de decoro no uso de banheiros públicos).
Manipulação das minorias
Mais grave é que a psicologia no Brasil se deixa manipular pelas minorias organizadas, como os militantes do movimento gay e os partidários da liberação das drogas — isso quando não manipula ela própria essas minorias. Ao menos a psicologia defendida pelo Conselho Federal de Psicologia. Toda vez que entro no portal desse conselho na Internet ou leio entrevistas de seus membros na imprensa, fico com vergonha pelos psicólogos, obrigados a se submeter a conselheiros que transformam a ciência num palanque. Muitas das resoluções da entidade máxima da psicologia brasileira não passam de rascunhos sociológicos de estudantes do ensino médio. Em vez de reivindicar a especificidade das causas psicológicas entre as questões sociais, como seria de se esperar do órgão regulamentador da psicologia, o conselho faz justamente o contrário — transforma todos os dramas humanos em problemas sociais, desde o abuso de drogas aos transtornos da sexualidade. É o caso do documento “13 Razões para Defender uma Política para Usuários de Crack e Outras Drogas Sem Exclusão”, em que o Conselho Federal de Psicologia associa-se descaradamente às teses da esquerda, plagiando até o número eleitoral do PT. Entre as tais “13 Razões” não há uma única que não possa ser assinada por uma sigla partidária ou um diretório de estudantes. Nelas nada há de cientificamente específico: tudo é política, e política de esquerda, como se o psicólogo — que o CFP impede, na prática, de ser cristão — tivesse a obrigação de ser marxista.
Aliás, em seu afã de politizar a profissão, o CFP — assim como muitos conselhos regionais — infringe o próprio Código de Ética do Psicólogo, que, em seu artigo 2º estabelece: “Ao psicólogo é vedado induzir a convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas, religiosas, de orientação sexual ou a qualquer tipo de preconceito, quando do exercício de suas funções profissionais”. Contrariando esse dispositivo, o próprio Conselho Federal de Psicologia se engaja em lutas políticas de caráter nitidamente partidário, esquecendo-se que não é associação nem sindicato, mas um conselho profissional, que tem a obrigatoriedade de ser neutro, pois faz o papel do Estado no que diz respeito à profissão, determinando quem pode e quem não pode ser psicólogo — e cobrando do profissional por isso. Um conselho profissional não pode professar nenhuma opinião, sob pena de praticar uma espécie de estelionato contra o profissional que representa.
Um psicólogo que porventura não concorde com a atuação do movimento gay, dos trabalhadores sem terra ou dos que defendem o controle social dos meios de comunicação, simplesmente é desrespeitado pelo Conselho Federal de Psicologia no que há de mais essencial no ser humano — o livre-arbítrio. Querendo ou não, ele será obrigado a contribuir com todos esses movimentos, pois muitos conselhos de psicologia, começando pelo federal, militam em favor de todos eles, como se realizar paradas gays, invadir terras e censurar os meios de comunicação fossem atividades intrinsecamente ligadas ao caráter científico da psicologia, que compete aos conselhos resguardar. Ao contrário do que ocorre com sindicatos e associações, a filiação do profissional ao seu respectivo conselho é obrigatória — daí a imprescindível neutralidade política que essas entidades devem buscar, sob pena de praticarem abuso de poder. Infelizmente, o Conselho Federal de Psicologia oscila entre duas variáveis: ora é um Politburo de classe, impondo normas ditatoriais aos psicólogos, ora é um grêmio livre estudantil, subscrevendo todas as utopias adolescentes da esquerda brasileira.
Em defesa de criminosos
O Conselho Federal de Psicologia chegou a constituir o Grupo de Trabalho “Pelo Fim das Prisões”, que produziu o documento intitulado “Falando Sério: Sobre Prisões, Prevenção e Segurança Pública”, publicado em 2008. No país dos 50 mil assassinatos anuais — sem contar estupros, agressões e outros crimes que deixam sequelas físicas e psicológicas —, o CFP, refocilando entre o cinismo e a insanidade, elege como principais vítimas justamente os criminosos. Além de defender o utópico fim das prisões, o documento ataca violentamente a Lei dos Crimes Hediondos (mesmo sabendo que ela jamais foi cumprida à risca) e chega a chamar o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), adotado em penitenciárias de segurança máxima, de “produtor de loucura e sofrimento”. É como se esse regime tivesse sido adotado para punir ladrões de galinha e não para tentar conter a fúria assassina dos chefões do narcotráfico, como Marcola, Fernandinho Beira-Mar e os assassinos de Tim Lopes, que não hesitam nem mesmo em queimar pessoas vivas. Como é que um conselho de psicologia é moralmente incapaz de perceber que não são esses criminosos irrecuperáveis que precisam de psicólogos e, sim, suas vítimas?
A defesa apaixonada que o Conselho Federal de Psicologia faz dos criminosos revela que essa entidade não cumpre com sua função social de zelar pela profissão de psicólogo, pois não se comporta com a devida isenção. Ou alguém acredita que a alucinada defesa do “fim das prisões” pode ser tratada como um consenso científico, como faz o CFP, que chega a transformar essa tese em sua proposta oficial para o país? É óbvio que não faltam no mundo, inclusive no Brasil, psicólogos sérios e altamente capacitados que sustentam teses exatamente opostas às do conselho; logo, quando o conselho transforma em consenso o que é controverso, ele desrespeita a individualidade dos psicólogos (transformados em rebanho sem vez nem voz) e vende gato por lebre para a sociedade. É justamente o que ocorre com a Resolução nº 1/1999, que trata da orientação sexual. Não há nenhum consenso científico sobre a homossexualidade — nem mesmo quanto ao seu caráter normal ou patológico.
A homossexualidade deixou de ser considerada um “transtorno mental” no Catálogo Internacional de Doenças (CID) muito mais por pressões políticas do que por razões técnicas. No Brasil, por exemplo, o movimento para que o homossexualismo deixasse de ser tratado como um transtorno mental partiu de grupos gays e ganhou força no início da década de 80 quando essa causa sensibilizou não exatamente os cientistas, mas os políticos. Em editorial da “Revista de Saúde Pública” da Universidade de São Paulo, publicado em outubro de 1984, o médico Ruy Laurenti, livre-docente e professor titular do Departamento de Epidemiologia da USP, relatava, com certa ironia, que a luta para retirar a homossexualidade da categoria dos transtornos mentais — inicialmente desprezada pelas sociedades científicas — havia ganho a adesão unânime de uma Assembleia Legislativa e de cinco Câmaras de capitais. Segundo ele, “até o final de 1983, 309 políticos, desde um governador até 167 vereadores”, haviam subscrito o abaixo-assinado de um grupo gay contra a classificação da homossexualidade como desvio e transtorno mental.
Ao contrário do que tenta fazer crer o CFP, a homossexualidade não desapareceu por inteiro do Catálogo Internacional de Doenças adotado pela Organização Mundial de Saúde. O travestismo e o transexualismo, por exemplo, continuam a fazer parte da CID, sendo considerados “transtornos da personalidade e do comportamento do adulto”, dividindo o mesmo agrupamento da pedofilia, do sadomasoquismo, da personalidade paranoica e da personalidade esquizoide. Deve ser este um dos motivos que levam o antropólogo Luiz Mott, decano do movimento gay no Brasil, a convencer os jovens homossexuais a não virarem travestis, como mostra a tese de doutorado “Grupos Gays, Educação e a Construção do Sujeito Homossexual”, defendida na Faculdade de Educação da Unicamp em 2005 pelo professor de história Anderson Ferrari, que já concluiu seu pós-doutorado na Universidade de Barcelona. Se o antropólogo Luiz Mott, apenas com base em sua experiência pessoal de gay, pode aconselhar um jovem a não virar travesti e permanecer apenas homossexual, indo contra a própria vontade desse jovem, por que um psicólogo não pode aconselhar um angustiado homossexual cristão a reconciliar-se com a crença de seus pais, fonte dos valores fundamentais da civilização ocidental, sedimentada em milhares de anos? O Conselho Federal de Psicologia nem precisa ter resposta para esta pergunta — basta que não seja ditador e permita que ela seja feita.
Fonte: Jornal Opção via Julio Severo
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