07 de Junho de 1997 –
Programa Mendes Ribeiro – Rádio Guaíba, Porto Alegre
No dia 10 de junho de
1986, uma menina de dois anos e meio de idade caiu em um riacho situado nos
arredores da cidade de Salt Lake (EUA), e submergiu. Devido à elevação da temperatura ambiental
própria da estação, os picos montanhosos vizinhos encontravam-se em degelo,
determinando no riacho um correnteza rápida e forte, e mantendo a água em
temperatura em cerca de 5º.C.
Avisada
por outra criança, a mãe acorreu ao local e, após 4 a 11 minutos de busca sem
sucesso, chamou o serviço de resgate. Em
cerca de 8 minutos os paramédicos encontravam-se no local e, também não
encontrando a menina, decidiram-se por reduzir a vazão de uma barragem situada
correnteza acima. Com o decréscimo do
nível da água, puderam visualizar o braço da menina, de encontro a uma rocha
situada a 20 metros do local da submersão.
Ela foi retirada da água 62 minutos depois do telefonema da mãe ao
número de emergência, totalizando pelo menos 66 minutos de submersão. Encontrava-se em parada cardíaca e
respiratória, cianótica e flácida, com as pupilas dilatadas e fixas à luz.
Apesar disso, a equipe paramédica deu início às manobras de reanimação,
enquanto transportava a menina ao “Primary Children’s Medical Center“, de SaltLake City, onde a pequena paciente deu entrada, apresentando uma temperatura
retal de 22, 5oC, medida na sala de emergência.
De acordo com o conhecimento
científico em vigência na época, e ainda hoje profundamente arraigado no meio
médico, a hipotermia protegeria o cérebro contra a falta de oxigenação, por
reduzir a necessidade do tecido nervoso por oxigênio. A cada 8º.C de redução da temperatura do
organismo, a quantidade de oxigênio necessária para manter a vitalidade do
tecido cerebral reduz-se pela metade.
Assim, considerando-se como 5 minutos o tempo máximo de anóxia que o
tecido nervoso consegue suportar sob temperatura normal (37oC) sem desenvolver
lesão de suas células, a um nível próximo de 21C o cérebro da pequena paciente
não poderia suportar mais do que 20 minutos de afogamento (a essa temperatura
temos apenas 1/4 da necessidade normal de oxigênio, e portanto o cérebro
poderia resistir a 4 x 5 minutos de anóxia, ou seja: 20 minutos). Dessa forma, segundo o conceito científico
vigente na época, como essa temperatura não foi atingida de imediato a partir
da submersão, a menina não poderia sobreviver sem lesão cerebral irreversível,
mesmo que apenas esse tempo (20 minutos) houvesse decorrido até o resgate e o
início das manobras de reanimação.
A equipe pediátrica que
recebeu a menina poderia, portanto, ter apenas assinado o atestado de óbito,
enviando o corpo para o necrotério, sendo bastante provável que, na maioria dos
centros de atendimento de emergência de qualquer lugar do mundo, teria sido
essa a conduta tomada.
Ao contrário, movidos
provavelmente pelo impacto emocional da situação, os plantonistas sustentaram
as manobras de reanimação, enquanto tentavam obter o reaquecimento do pequeno
corpo, sem sucesso, pois a temperatura continuava a reduzir-se, atingindo 19C.
Com a concordância dos pais, transportaram
a menina para o bloco cirúrgico, onde, cerca de 3 horas após o momento da
submersão, ela foi conectada a uma máquina de circulação sangüínea
extra-corpórea, capaz, como se sabe, de eficientemente reaquecer o sangue à
medida que o faz circular. Ao atingir a
temperatura central cerca de 25oC, a menina abriu espontaneamente os olhos e
suas pupilas oculares tornaram-se novamente reativas à luz. Ao mesmo tempo, desenvolveu fibrilação
ventricular que de imediato respondeu aos antiarrímicos administrados,
reassumindo o coração o ritmo sinusal.
A paciente permaneceu conectada ao aparelho ao longo de 53 minutos, até
atingir novamente a temperatura de 37oC, perfazendo um decurso total de
aproximadamente 4 horas, decorridas desde o momento da submersão até a retomada
da temperatura normal.
Ao longo dos 6 dias que
se seguiram a menina teve de ser mantida conectada a um respirador mecânico
devido aos distúrbios pulmonares determinados pelo afogamento. No 7o. dia o tubo introduzido em sua via
aérea e conectado ao respirador foi retirado, e a pequena paciente chorou. No 14o. dia conseguia emitir frases de até 3
palavras! A criança recebeu alta 2
meses após a ocorrência do acidente, apresentando um desenvolvimento psicomotor
normal para sua idade! Tinha como única
alteração neurológica um discreto tremor, que encontrava-se quase desaparecido
um ano depois, quando os médicos que a atenderam encontravam-se escrevendo o
relato do caso, que veio a ser finalmente publicado no “Journal of The AmericanMedical Association” (Bolte et al, 1988).
O Acidente de Salt Lake
não foi um caso isolado. Na realidade, dentre os casos descritos na literatura
médica, foi o 29o. caso de submersão com mais de 15 minutos de duração, em águas
com temperatura inferior ou igual a 10C, seguido de recuperação sem seqüelas
neurológicas.
Entretanto, dentre
todos, o tempo de submersão do acidente de Salt Lake foi o mais prolongado, e
também aquele em que o nível e a duração da hipotermia foi adequadamente
documentado. Em contraposição, na literatura médica não consta recuperação
neurológica em nenhum caso de submersão por mais de 15 minutos na ausência de
hipotermia.
Esse caso marcou
historicamente a instrumentalização da terapêutica da hipotermia moderada
pós-isquêmica que viria a ocorrer em pleno início da “Década do Cérebro” –
década de 90 –, e dez anos depois estaria em uso clínico ativo no ocidente em
hospitais alemães com seres humanos, não com animais, salvando vidas de pessoas
destinadas a um diagnóstico precoce de morte encefálica que se supunha até
então ocorreria em no máximo cinco minutos de falta de oxigenação
encefálica. Quando leva certamente horas
para ocorrer. Não ocorre em alguns
minutos.
Na “década do cérebro”,
em função da intensa busca de socorro terapêutico para os sequelados
neurológicos, foi demonstrado que os critérios diagnósticos da morte encefálica
concebidos em 1968 pelo Comitê Ad Hoc da Harvard Medical School para viabilizar
a lucrativa terapêutica transplantadora emergente, estavam completamente
errados.
E o erro não estava no
conceito, estava em seus critérios, portanto no procedimento diagnóstico
extremamente precipitado, que não só antecipa o ”diagnóstico” de morte, mas o
provoca com o desligamento do respirador por 10 minutos para ver se o paciente
volta a respirar .
Fonte: CGCoimbra
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