quarta-feira, 27 de agosto de 2008

USP: espiritualidade ajuda recuperação de drogados

Trabalhos de outros pesquisadores estabeleceram a importância da religião e dos grupos de acolhimento social, como fatores protetores contra o uso de álcool e drogas.

- Heitor (nome fictício) está sem beber há 23 anos e ainda freqüenta as reuniões dos Alcoólicos Anônimos. Decidiu parar assim que percebeu os danos materiais, emocionais e espirituais causados pelo uso abusivo do álcool na sua vida e na dos familiares. Essa atitude, acompanhada por uma sensação de superação pessoal e transcendência - que muita gente chama de espiritualidade – sem relação necessária com uma religião específica e que ocorre mesmo entre ateus - é a principal motivação dos dependentes crônicos de bebida alcoólica, maconha, cocaína e crack para abandonar o vício. Uma persistência como a de Heitor, considerada rara, já é seguida por outros dependentes de drogas que procuram manter, depois de 10 anos de abstinência, “seu eixo” num ponto “metafísico” dentro de si mesmos.

Longe de ser uma observação isolada, essa constatação é baseada em dado estatístico levantado pela primeira vez no País, em pesquisa, pela mestranda de enfermagem psiquiátrica, Angélica Martins de Souza Gonçalves, da Faculdade de Enfermagem da USP, de Ribeirão Preto.

Trabalhos de outros pesquisadores estabeleceram a importância da religião e dos grupos de acolhimento social, como fatores protetores contra o uso de álcool e drogas. Nessa pesquisa, Angélica Martins mediu estatisticamente a importância da espiritualidade como fator de recuperação, entrevistando 138 dependentes de álcool e drogas de quatro cidades do Estado: Ribeirão Preto, Bauru, São Carlos e Monte Alto.

- Constatamos que quando uma pessoa quer mudar um comportamento, só dá certo quando faz alguma coisa para que isso aconteça. No momento de decisão, a espiritualidade interfere bastante – explica a enfermeira, que trabalha simultaneamente em um programa de treinamento da Faculdade de Medicina da USP para profissionais da saúde pública, que lidam com pessoas dependentes de álcool e drogas.

Transcendência

A diferença entre religião e espiritualidade, segundo a pesquisa, é que a religião formal tem um efeito protetor contra os problemas, enquanto a espiritualidade ou esse estado de transcendência interior acompanha o empenho daqueles que querem retomar o controle da própria vida.

Uma forma de superar os problemas é restabelecer os valores. A espiritualidade tem a ver com o sentido que a pessoa dá à sua vida, diferente das questões sensuais. Já religião tem a ver com questão doutrinária – lembra Angélica Martins, ao verificar que a espiritualidade se torna importante durante o processo de reabilitação.

A mesma escala estatística - Spirituality Self Ratting Scale - (SSRS) que adaptou para o português, utilizada também junto com sua orientadora, a professora Sandra Pillon, em associação com a Faculdade de Filosofia, mostrou em outra pesquisa, que no caso dos estudantes universitários do campus - que fazem uso abusivo de álcool, mas ainda não têm problemas de dependência – a questão da espiritualidade não é relevante.

Uso abusivo

A dependência de bebida alcoólica e drogas em geral e o peso da religião e espiritualidade nos processos de recuperação sempre preocuparam Angélica Martins, que cresceu numa família presbiteriana. O fato de ter conhecido na comunidade vários casos de pessoas com esses problemas aumentou ainda mais seu interesse, durante a graduação, pelas técnicas de controle e recuperação da dependência de álcool e drogas.

Além disso, já é um problema de saúde pública. Dados nacionais apontam que em torno de 12,3% da população brasileira entre 12 a 65 anos de idade – cerca de 6 milhões de pessoas – podem ser enquadradas como dependentes do álcool no País: 19,5% são do sexo masculino e 6,5% do feminino. Já quanto ao uso de drogas – diferente de álcool e tabaco - 22,8% da população disseram já ter feito uso na vida.

A maconha aparece em primeiro lugar entre as drogas ilícitas mais usadas, com estimativa de uso por 8,8% da população, predominando o sexo masculino em todas as faixas etárias. 1,24% da população brasileira, segundo as estatísticas oficiais, são dependentes da maconha. A prevalência do uso na vida de cocaína e crack no Brasil é de 2,9% e 0,7% respectivamente. O uso predominante da maconha e da cocaína ocorre entre os homens.

Pontuação é alta entre comunidades

A pesquisa constatou uma incidência estatística alta na escala da espiritualidade para as pessoas em tratamento para dependência de álcool, maconha, cocaína e crack ou em poliusuários dessas drogas.

- Verificamos que as pessoas vinculadas às comunidades terapêuticas pontuam muito alto nesta escala. No contexto em que estão vivendo, tem sempre reunião voltada para esse aspecto - disse Angélica Martins, que acha a espiritualidade decisiva no processo de recuperação.

- O Brasil tem poucos trabalhos nessa área de espiritualidade. Já na literatura norte-americana existem mais de mil artigos que falam sobre isso – lembra a especialista que adaptou uma escala norte-americana para poder pesquisar sua tese de mestrado na área de Enfermagem Psiquiátrica.

Embora no Brasil dentro do meio acadêmico esse tipo de estudo seja considerado muito “subjetivo”, a adaptação da escala aos padrões brasileiros, segundo ela, permitiu um resultado seguro.

A pesquisa

Responderam ao questionário usuários de substâncias psicoativas da Comunidade Evangélica de Bauru, Comunidade Católica de Monte Alto, Comunidade não religiosa de São Carlos, de um serviço público de Ribeirão Preto e dois grupos de Alcoólicos Anônimos: um de Ribeirão Preto e outro de Bauru.

- Esta é a primeira vez, no Brasil, em que se avaliam os níveis de espiritualidade em uma amostra composta por usuários de álcool ou drogas vinculados a cinco diferentes serviços para reabilitação no abuso de substâncias psicoativas – explica a pesquisadora.

A amostra do trabalho foi de 138 usuários de álcool ou drogas internados ou buscando assistência nos serviços e comunidades. Metade deles estava vinculada à instituição religiosa. Do total, 47,1% eram dependentes da bebida alcoólica e 31,9% de drogas ilícitas. A maioria (60,8%) considera espiritualidade diferente de religiosidade.

Fonte: EPTV - Divulgação: O Verbo

Nenhum comentário: