Por Lenise Garcia
Com atraso de quase 20 anos em relação às recomendações internacionais, e à publicação de leis de biossegurança em outros países, e depois de intensas polêmicas no Congresso Nacional, o Brasil finalmente publicou, em 2005, a Lei 11.105, que regulamenta o uso de organismos geneticamente modificados (OGMs) no país. É uma lei que poderia ser aperfeiçoada em muitos pontos, mas ao menos é uma lei.
Agora, a proposta de novo Código Penal feita por uma comissão de juristas para o Senado e apresentada como Projeto de Lei 236/2012 pelo senador José Sarney, traz em uma de suas últimas linhas um verdadeiro cavalo de Troia. Sem qualquer justificativa, entre as diversas leis ou artigos de lei que revoga, estão o § 3.° do art. 5.°, e artigos 24 a 29 da Lei de Biossegurança. Isso corresponde a toda a parte penal desta lei.
Deixariam de ter qualquer sanção penal, por exemplo, a comercialização de células-tronco embrionárias humanas e a utilização de embriões humanos em desacordo com o que dispõe o art. 5.º da lei (amplamente debatido também no STF, que liberou o uso dos embriões congelados há mais de três anos ou que fossem inviáveis). Também deixa de ter sanção penal a prática de engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano ou embrião humano, e a realização de clonagem humana.
Ainda ficariam sem punição a liberação ou descarte de OGMs no meio ambiente, em desacordo com as normas estabelecidas pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) e pelos órgãos e entidades de registro e fiscalização; assim como produzir, armazenar, transportar, comercializar, importar ou exportar OGMs ou seus derivados, sem autorização ou em desacordo com as normas estabelecidas pela CTNBio e pelos órgãos e entidades de registro e fiscalização.
Se aprovada, no novo Código Penal, essa absurda revogação, a CTNBio passaria a ser uma comissão fantasma, que produziria normas para não serem cumpridas, uma vez que não haveria qualquer sanção para quem as descumprisse.
O Brasil se tornaria um laboratório aberto para todos os tipos de experimentos genéticos, com possíveis consequências gravíssimas para a saúde humana e para o ambiente, além de abrir a porta para experimentos que desconsideram totalmente a dignidade humana, como a clonagem, a manipulação e o comércio de embriões.
Como agravante, o Brasil ainda não tem qualquer lei que regulamente a reprodução assistida. Embriões humanos podem ser produzidos em grande número e sem nenhum controle. Há enorme dificuldade em se fiscalizar o mau uso de algo (na verdade, alguém) que é literalmente invisível; se desse mau uso não resultar nenhuma sanção, é difícil imaginar até onde se pode chegar.
Essa questão tem estado ausente dos acalorados debates sobre a proposta de Código Penal por passar quase despercebida, uma vez que somente aparece como uma a mais entre inúmeras revogações que poucos terão tido tempo de estudar. Por isso, é importante que todos os que compreendem a gravidade da ausência de biossegurança, nas suas variadas vertentes, façam ouvir a sua voz para evitar esse absurdo.
Ficam também as perguntas: a quem interessa que o Brasil se torne uma terra sem lei para experimentos genéticos? Como surgiu a revogação desses artigos na comissão de juristas? Que outras surpresas ainda nos aguardam nas minúcias desse projeto de lei com mais de 500 artigos que está tramitando a toque de caixa em um Congresso esvaziado pela campanha eleitoral?
Lenise Garcia é professora do Instituto de Biologia da Universidade de Brasília (UnB).
Fonte: Gazeta do Povo
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