Por Rodrigo Phanardzis Ancora da Luz
O livro de Atos dos Apóstolos, o quinto do Novo Testamento da Bíblia e considerado também uma continuação do Evangelho segundo Lucas, contém preciosas informações não apenas de interesse teológico, despertando a atenção de historiadores e até mesmo de estudiosos do Direito. A empolgante narrativa de 28 capítulos começa na região de Jerusalém, com uma breve conversa entre Jesus e os apóstolos, alguns instantes antes de sua ascensão aos céus, e termina na cidade de Roma, com o apóstolo Paulo cumprindo a sua prisão domiciliar numa casa por ele alugada enquanto aguardava em custódia o julgamento de seu caso pelo imperador romano.
O apóstolo Paulo, sem dúvida, deu uma grande contribuição à expansão da fé cristã no século I da era comum. Depois de ter sido um implacável perseguidor da Igreja, Paulo converteu-se ao cristianismo e começou a pregar o Evangelho por diversas regiões da parte oriental do Mar Mediterrâneo, empreendendo três viagens missionárias que incluíram territórios atuais de Síria, Chipre, Turquia e Grécia.
Contudo, o ex-perseguidor da Igreja tornou-se perseguido. Em muitas das cidades nas quais Paulo exerceu o seu ministério apostólico, ele veio a sofrer uma forte oposição tanto de judeus quanto de pagãos, vindo a ser injustamente preso e violentado sem que houvesse qualquer condenação criminal contra ele. Na cidade macedônica de Filipos, Paulo chegou a demonstrar um razoável conhecimento a respeito dos direitos que tinha como cidadão romano quando as autoridades locais mandaram libertá-lo de sua prisão ilegal.
É importante lembrar que, nos tempos de Paulo, nem todos eram iguais perante as leis de Roma. Uns eram escravos e eram tratados como mercadorias. Outros eram meros estrangeiros para os romanos, embora vivessem dentro da circunscrição do império pagando os seus pesados impostos. E existiam ainda aqueles que, por motivo de nascimento, ou de aquisição mediante algum pagamento ao governo, tornavam-se cidadãos romanos e que, portanto, passavam a ter alguns direitos naquela sociedade. Pois Roma era a cidade que governava o mundo no século I e, deste modo, quem tivesse a cidadania romana teria direitos protegidos pelas leis, entre os quais o de receber um julgamento justo, caso fosse feita alguma acusação.
Sendo assim, mesmo naquela época, uma autoridade não poderia jamais prender uma pessoa que fosse cidadão romano sem que houvesse um justo motivo. E muito menos castigar com açoites, dando um tratamento desumano, conforme tinha ocorrido com Paulo e Silas na cidade de Filipos. Logo, Paulo teve que ser libertado e ainda recebeu desculpas das autoridades locais pelo ocorrido.
Contudo, após concluir a sua terceira viagem missionária e retornar mais uma vez para Jerusalém, Paulo veio a enfrentar um processo criminal, o que desperta até hoje o interesse de muitos pesquisadores.
Nesta ocasião, o ministério apostólico de Paulo já tinha muitos colaboradores. Lucas diz que, desta vez, quando o apóstolo retornou a Jerusalém, acompanharam-no vários discípulos oriundos de lugares anteriormente evangelizados na primeira e na segunda missão evangelística.
Ao chegar na cidade, Paulo é orientado por Tiago a submeter-se aos costumes dos judeus para evitar conflitos, pois alguns de seus compatriotas tinham espalhado boatos de que o apóstolo estaria negando a Moisés e ensinando os judeus a não circuncidarem mais os seus filhos.
Entretanto, a atitude praticada por Paulo, no sentido de externar aos judeus a observância das tradições de seu povo, não foi capaz de evitar a sua prisão. E, justamente quando ele se encontrava no templo judaico, o apóstolo veio a ser repentinamente acusado por alguns de seus compatriotas por ter "profanado" aquele local introduzindo gentios ali, pelo que passaram a espancá-lo e toda cidade ficou tumultuada, de modo que o comandante as forças romanas em Jerusalém precisou intervir para fazer cessar a confusão. Paulo, então, escapou do linchamento, mas ficou detido.
Pouco depois de sua prisão, Cláudio Lísias, o comandante da fortaleza de Jerusalém, tomou a providência de enviar Paulo para o governador da província da Judeia, na cidade de Cesareia, a fim de zelar pela segurança do apóstolo por ser ele um cidadão romano, sendo que Lucas, em sua narrativa, chega a transcrever o teor da correspondência que comunicava a sua transferência:
"Cláudio Lísias ao excelentíssimo governador Félix, saúde. Este homem foi preso pelos judeus e estava prestes a ser morto por eles, quando eu, sobrevindo com a guarda, o livrei, por saber que ele era romano. Querendo certificar-me do motivo por que o acusavam, fi-lo descer ao Sinédrio deles; verifiquei ser ele acusado de coisas referentes à lei que os rege, nada, porém, que justificasse morte ou mesmo prisão. Sendo eu informado de que ia haver uma cilada contra o homem, tratei de enviá-lo a ti, sem demora, intimando também os acusadores a irem dizer, na tua presença, o que há contra ele." (ver Atos 23:26-30)
Nos primeiros momentos, a sua prisão havia ocorrido por causa de um tumulto na cidade de Jerusalém. Porém, ao chegar em Cesareia, Paulo passou a ser efetivamente processado pelo sumo sacerdote judeu que pretendia matá-lo como havia sido feito anteriormente com Jesus e com Estevão.
Nesta época, a sede do governo romano na região da Judeia não estava mais situado em Jerusalém e sim em Cesareia. Contudo, o Sinédrio ainda se reunia em Jerusalém onde também havia um comando das forças romanas e, ao que parece, seria uma unidade subordinada ao governador daquela província romana.
Para o comandante das forças romanas em Jerusalém seria mais tranquilo livrar-se de Paulo, mandando-o para junto do governador numa outra cidade, do que suportar toda aquela pressão dos judeus querendo assassinar um prisioneiro que portava a cobiçada cidadania romana.
Mais uma vez, tal como no incidente de Filipos, Paulo havia prevalecido de sua cidadania romana, a qual iria lhe assegurar o direito a um julgamento justo, conforme as leis da época. Pois se Paulo fosse apenas um judeu, provavelmente teria sofrido injustos açoites e teria sido entregue nas mãos dos seus compatriotas para ser julgado e condenado pelo Sinédrio por se tratar de uma questão meramente religiosa. E, caso viesse a ser linchado publicamente como foi Estevão, as autoridades romanas nem teriam com o que se preocupar, se não fosse ele um cidadão romano.
Ao ser conduzido preventivamente preso para a cidade de Cesareia, Paulo ficou distante do foco de tensão, de modo que o seu julgamento ali receberia menos pressões por parte dos judeus do que se fosse realizada uma audiência em Jerusalém.
Interessante perceber que todos esses acontecimentos no final colaboraram que Paulo fosse mais tarde dar prosseguimento ao seu apostolado na cidade de Roma, conforme se verá. Porém, Paulo precisou permanecer por pelo menos dois anos preso em custódia na cidade de Cesareia sob os cuidados do governador da Judeia devido à queixa apresentada pelos judeus, cinco dias depois de ter sido transferido de Jerusalém. Isto porque uma vez sendo formalizada a acusação, foi instaurado um verdadeiro processo criminal dentro dos moldes a época, segundo as leis romanas.
Embora na época não existisse ainda a separação entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, como existe nos dias de hoje, já era proibido uma autoridade condenar um cidadão romano a cumprir qualquer tipo de pena arbitrariamente. Pois, para que alguém fosse morto ou condenado a trabalhos forçados, seria preciso passar por um processo criminal com direito à defesa e à produção de provas, co que se encontra registrado por Lucas em Atos:
"A eles respondi que não é costume dos romanos condenar quem quer que seja, sem que o acusado tenha presentes os seus acusadores e possa defender-se da acusação" (Atos 25:16).
Tal como ocorre nos dias de hoje numa CPI do Congresso Nacional, o então governador da Judeia, Marco Antônio Félix, procurou tirar vantagens políticas e pessoais a respeito do caso Paulo.
Lucas conta que Félix ficou protelando o andamento do processo de Paulo e, com frequência, mandava chamá-lo alimentando a vã expectativa de arrumar alguma propina (Atos 24:26).
Agindo com ousadia, Paulo certa vez chegou a pregar sobre Jesus para Félix e sua jovem esposa Drusila, filha do rei Herodes Agripa. Porém, o governador apenas sentiu-se amedrontado e se recusou a abraçar a fé, tendo mantido contatos com Paulo pelo período de dois anos, deixando-o encarcerado em custódia a fim de agradar os judeus e, talvez, aumentar sua influência política sobre a região.
Segundo a História, Félix tinha um casamento considerado adúltero com Drusila, sob o ponto de vista judaico-cristão, pois ela havia sido casada com Azis de Emesa e, portanto, jamais poderia contrair novas núpcias enquanto vivesse o seu marido. Porém, como ela era filha de Herodes Agripa, a afinidade com aquela influente família da Palestina poderia dar mais poderes a Félix na região.
Ao fim de dois anos depois, Félix foi substituído por Pórcio Festo em seu cargo. O novo governador, na certa desejando conquistar o apoio político dos judeus na região, planejou então realizar logo o julgamento de Paulo em Jerusalém e para isto convocou uma audiência em Cesareia para decidir sobre a questão.
Sabiamente, Paulo utilizou-se de um recurso previsto nas leis romanas – o apelo para César. Isto porque, naquela época, as leis garantiam a um cidadão romano o direito de requerer uma audiência com o imperador, caso entendesse estar sofrendo injustiças no seu processo.
Ao fazer uso desse instrumento jurídico (o apelo para César), Paulo estaria ganhando a sua passagem de ida para Roma, o que, em breve, iria lhe acontecer. Porém, antes disto, Paulo ainda iria prestou um depoimento perante o rei Agripa e à sua irmã Berenice, os quais vieram visitar Festo em Cesareia naqueles dias.
Assim, aproveitando a presença do rei Agripa na cidade, Festo resolve lhe expor o caso de Paulo pedindo-lhe uma orientação, pelo que o governador convocou uma nova audiência a fim de ser colhido mais um depoimento pessoal do apóstolo.
Embora a jurisdição de Festo tivesse sido esvaziada com o apelo de Paulo, o governador ainda pretendia obter o posicionamento do rei Agripa a fim de poder justificar qual seria o motivo das acusações que pesavam contra o apóstolo e que teriam dado ensejo à sua injusta prisão e à manutenção daquela absurda custódia.
Festo acreditava que Agripa, por ser judeu, poderia ajudá-lo na compreensão daquele difícil caso para o qual ele não conseguia encontrar uma justificativa já que Paulo não cometera nenhum crime que contrariasse as leis romanas e tão pouco teria profanado a religião judaica.
Pela lógica do sistema romano, Paulo jamais deveria ter ficado preso! Desde o momento em que foi agredido, em Jerusalém, cabia às autoridades romanas tê-lo protegido dos judeus que tentavam matá-lo, sem restringir-lhe a liberdade. Contudo, essas autoridades desejavam satisfazer às multidões conquistando o apoio político dos líderes judeus e, como não encontraram permissão das próprias leis para permitirem o linchamento de um cidadão romano em praça pública, ficaram todos embaraçados para decidir.
Ora, se dois anos antes Félix recebeu Paulo em Cesareia mantendo-o em custódia por todo este período, longe de Jerusalém, logo precisaria haver um justo motivo que justificasse esta providência excepcional. E, uma vez que outra autoridade assumiu o caso, cabia ao novo governador da Judeia (Festo) julgar Paulo, uma vez que ele havia resolvido levar o caso para Jerusalém a fim de dar andamento ao processo e lá proferir a sentença. Só que, com o apelo de Paulo ao imperador, Festo precisava escrever algo a respeito de seu prisioneiro e, como não tinha o que dizer para justificar aquela prisão, aproveitou a presença de Agripa em Cesareia para lhe apresentar o caso confiando na possibilidade do rei identificar alguma conduta desabonadora capaz de justificar a restrição de liberdade praticada.
Ousadamente Paulo aproveita aquela nova audiência perante Festo para pregar o Evangelho perante o próprio governador, Agripa, sua irmã Berenice e várias outras pessoas presentes, demonstrando pouca preocupação com o que poderia ser decidido a seu respeito.
Interessante que Paulo poderia muito bem ter reclamado das injustiças cometidas em seu processo, mas preferiu pregar sobre Jesus para esse público de autoridades corruptas e injustas, fazendo com que toda aquela situação se tornasse mais uma oportunidade para falar a respeito do Evangelho.
Em Atos 26:1-23, Lucas reproduz o discurso de Paulo até ser interrompido pelo governador no versículo 24, sendo que a defesa de Paulo perante o rei Agripa representa um emocionante testemunho sobre a sua vida. Paulo não escondeu o seu passado perverso como perseguidor da Igreja e de, ex-seguidor da seita dos fariseus. Mencionou sua conversão quando ia prender cristãos na cidade de Damasco. Falou sobre a missão evangelística que recebeu e quanto ao trabalho eclesiástico que desempenhou durante seus últimos anos.
Além de Paulo ter informado ao rei sobre o seu passado e sua vocação apostólica, Paulo também contextualizou o seu julgamento dentro de uma visão religiosa, "por causa da esperança da promessa que por Deus foi feita" (At 26:6-7), explicando que o motivo pelo qual chegou a ser preso foi tendo sido o fato de ele anunciar o arrependimento e a conversão (Atos 26:20-21).
Curioso que mesmo sendo interrompido pelo governador (Atos 26:24), Paulo conseguiu completar a sua mensagem abordando os principais aspectos da evangelização cristã: o sacrifício de Jesus, a necessidade de arrependimento e de conversão a Deus, bem como a ressurreição dos mortos. Ao prestar um depoimento sobre a sua vida, Paulo foi capaz de reunir na sua mensagem todos os pontos essenciais de uma pregação, agindo com ousadia e liberdade diante de reis e das autoridades da época, ainda que estivesse aparentemente algemado.
Segundo a narrativa de Lucas em Atos, verifica-se que o governador Festo resolveu interromper a pregação de Paulo chamando-o de louco. E, quanto ao rei Agripa, mesmo conhecendo as Escrituras e o que diziam os profetas a respeito de Cristo, preferiu afirmar que "por pouco" teria se tornado um cristão.
De acordo com a História, havia rumores na época de que Agripa vivia uma relação incestuosa com sua irmã Berenice, a qual foi mais tarde amante do imperador Tito. O seu apego ao poder político e a um estilo de vida fora dos padrões judaico-cristãos podem ter se tornado um impedimento para que se convertesse ao cristianismo. Contudo, ao se retirarem do local da audiência e se reunindo separadamente, Festo e Agripa concordaram entre si que Paulo nada havia praticado que merecesse a morte ou a prisão (Atos 26:31).
Dando uma solução para o caso de Paulo, Agripa resolve proferir o seu parecer pela absolvição do apóstolo, justificando a permanência da sua custódia apenas pelo fato do recurso interposto à César (Atos 26:32), como se o uso deste instrumento processual de defesa tivesse sido desnecessário.
Assim, reconhecendo a inocência de Paulo, as autoridades romanas da região da Judeia estavam se justificando formalmente diante do imperador, no sentido de que Paulo era realmente inocente e só estava sendo enviado para Roma porque recorreu para César ao invés de ter aceitado o julgamento ali na Palestina.
Deste modo, Paulo seguiu para Roma com um parecer em favor de sua inocência, o que só contribuiu para a sua absolvição, o que de fato, veio a ocorrer, segundo sabemos pela História da Igreja, visto que a decisão do imperador não consta registrada na Bíblia.
Importante esclarecer que a decapitação de Paulo, ocorrida anos depois, em nada tinha a ver com os acontecimentos relacionados à sua prisão descrita em Atos dos Apóstolos.
Ao deixar Cesareia em um navio, Paulo ainda permaneceu em custódia e continuou neste estado ainda por mais dois anos em Roma (Atos 28:30).
Outra observação relevante é que que até então não tinha se levantado nenhuma perseguição declarada do Império Romano contra a Igreja, pois os fatos descritos no Livro de Atos dos Apóstolos diziam respeito à intolerância de integrantes do judaísmo e a incidentes ocorridos em algumas cidades com os gentios como em Filipos (Atos 16:16-24) e também em Éfeso (Atos 19:23-41).
Para a época em que foi escrito, Atos dos Apóstolos, ao mesmo tempo, alcançou o objetivo de manter registrada a história inicial da Igreja e, principalmente, encorajar os demais cristãos que tão logo seriam massacrados por Nero, o qual, dentro de um contexto diferente das passagens narradas por Lucas, mataria Paulo e também a outros discípulos contemporâneos a Jesus.
Não demorou muito, Jerusalém veio a ser destruída pelas tropas de Tito durante o governo de seu pai, o general Verpasiano, sucessor de Nero. O templo judaico, tal como fora profetizado por Jesus no Evangelho de Mateus, foi verdadeiramente devastado pelas tropas romanas, restando apenas pedras e ruínas.
Por tais motivos, pode-se dizer que a maioria dos livros do Novo Testamento, entre os quais Atos e os três primeiros Evangelhos, foram escritos justamente antes da grande perseguição que se levantou por Nero e da destruição de Jerusalém. Não só para que houvesse memória histórica dos acontecimentos sobre a formação da Igreja como também para encorajamento dos cristãos diante das perseguições futuras. E, sem dúvida, Lucas encontrou a melhor maneira para encerrar o seu segundo livro, mostrando Paulo cumprindo dando continuidade ao seu ministério apostólico na cidade de Roma (Atos 28:30-31).
Fonte: publicado no site Jusnavigandi
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